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Grupo de Interesse em Fisioterapia Músculo-Esquelética
FISIOTERAPIA MÚSCULO-ESQUELÉTICA:
O FUTURO NO PRESENTE
#4
FISIOTERAPIA MÚSCULO-ESQUELÉTICA
NOS CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS:
PORQUÊ? ONDE? COMO?
Publicado a 25/11/2021
Atualmente, a União Europeia vive uma carência de modelos sustentáveis de prestação de cuidados de saúde e sociais. Isto porque foram concebidos em e para contextos muito diferentes daqueles que hoje encontramos, nomeadamente naquilo que respeita às alterações demográficas, especialmente a tendência para o envelhecimento da população e o aumento da carga de doença, fortemente relacionada com a múltipla morbilidade. [1]
A análise sistemática das estimativas globais da necessidade de reabilitação com base no Global Burden Disease 2019 apontou que, globalmente, mais de 1.600 milhões de adultos com idades entre 15–64 anos tinham uma condição que beneficiaria de cuidados de reabilitação em 2019. Este facto significa que pelo menos uma em cada três pessoas no mundo precisa de reabilitação em algum momento durante o curso de sua doença ou lesão, com as disfunções músculo-esqueléticas a contribuir para aproximadamente dois terços desta necessidade em saúde (Figura 1 e 2). [2]
Figura 1: Categorias de prevalência de condições de saúde com necessidade de reabilitação por faixa etária, 2019.
Figura 2: Categorias de prevalência de condições de saúde com necessidade de reabilitação por região mundial, 2019.
Entre os distúrbios músculo-esqueléticos, a dor lombar causou a maior carga de doença, com 568 milhões de pessoas e 64 milhões YLDs (anos vividos com incapacidade) em todo o mundo. Na verdade, a dor lombar foi a principal condição de saúde que contribuiu para a necessidade de serviços de reabilitação em 134 dos 204 países analisados (Figura 3) [2,3] sendo que, em adultos, a dor lombar é a principal razão para a saída prematura do mercado de trabalho [4].
Figura 3: Mapa das condições que predominam necessidades de cuidados de reabilitação, 2019.
Também em Portugal, as disfunções músculo-esqueléticas representam a maior prevalência de anos vividos com incapacidade (23% do total). E quando a análise longitudinal compara a evolução entre 1990 e 2016, a lombalgia e cervicalgia tiveram uma variação percentual crescente de 22,8% (Figura 4). Este mesmo padrão verifica-se quando analisamos os anos perdidos por incapacidade (DALYs), onde as mesmas condições passaram de terceira para primeira causa entre 1990 e 2016, à frente de condições como doença cardíaca isquémica, acidente vascular cerebral, Alzheimer ou diabetes (Figura 5). [5]
Figura 4: Principais causas de incapacidade (YLDs) e variação percentual, ambos os sexos, Portugal, 1990–2016.
Figura 5: Principais causas da carga de doenças (DALYs) e mudança percentual, ambos os sexos, Portugal, 1990–2016.
A Fisioterapia ainda é considerada, em muitos países, um serviço muito especializado e caro, com limitações no acesso. A única maneira possível de escalar a capacidade de resposta, de modo a responder às necessidades atuais e futuras, é através da integração dos cuidados de Fisioterapia no sistema de saúde, especificamente, ao nível dos Cuidados de Saúde Primários (CSP). [2]
O reforço dos CSP é fundamental para superar a enorme lacuna na oferta de serviços de Fisioterapia. Os CSP constituem o local onde o diagnóstico da maioria das condições de saúde é efetuado, e onde ocorre o encaminhamento para plataformas de prestação de serviços especializados. A promoção de cuidados de Fisioterapia ao nível dos CSP permitirá alcançar uma perspetiva integrada ao longo do ciclo de vida dos cidadãos, melhorando a qualidade de vida da população. [2]
Além dos benefícios para a saúde, a Fisioterapia fornecida em CSP também leva a benefícios sociais mais amplos. A intervenção precoce fornecida neste nível de prestação de cuidados, pode reduzir substancialmente a prevalência e atrasar o início dos efeitos incapacitantes das condições persistentes [6], e ajudar as pessoas a reduzir o absentismo no trabalho, e a reforçar a sua independência funcional, justificando benefícios de custos substanciais para o indivíduo e para a sociedade [7].
No âmbito da organização atual dos CSP, os fisioterapeutas estão, na sua grande maioria, integrados nas Unidades de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP). Esta unidade multidisciplinar (integra profissionais de saúde que não médicos de família ou de saúde pública ou enfermeiros) tem o potencial para possibilitar uma prestação de cuidados integrados que não existe em outra unidade do Serviço Nacional de Saúde, e esta capacidade é uma enorme mais-valia na promoção de ganhos em saúde à população.
Na área da Saúde músculo-esquelética a Fisioterapia já tem em desenvolvimento uma intervenção integrada e especializada na área da lombalgia não específica que é estratificada em função do perfil de risco / lombalgia crónica – o “Programa SPLIT”. Este nasceu de um projeto de investigação implementado inicialmente no ACES da Arrábida, através de um protocolo celebrado entre a ARSLVT e Instituições do Ensino Superior (Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Setúbal e Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa).
O Projeto SPLIT foi implementado nos ACES Arrábida (desde 2018), Arco Ribeirinho e Almada-Seixal (atualmente em fase inicial de implementação). Os resultados preliminares mostram que após ajustamentos, o tratamento SPLIT está estatisticamente associado a uma redução de cerca de 80% na probabilidade destes utentes virem a desenvolver dor persistente e incapacitante (crónica). A probabilidade de melhoria acima da diferença mínima clinicamente importante foi significativamente mais elevada para o SPLIT em comparação com os cuidados habituais para a capacidade funcional, intensidade da dor, e perceção global de melhoria. Aos 6 meses, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas para a intensidade da dor entre SPLIT e cuidados habituais. Após a implementação do SPLIT, a prescrição de testes de imagem diminuiu 30,0% (prática clínica habitual: 47,8%; SPLIT: 17,8%). As referências internas para Fisioterapia aumentaram 91,7% (prática clínica habitual: 8,3%; SPLIT: 100,0%) enquanto que a prescrição de terapia farmacológica reduziu 32,9% (prática clínica habitual: 84,3%; SPLIT: 51,4%). A média de sessões de tratamento foi de 4 sessões. [8]
A prestação de cuidados a pessoas com condições músculo-esqueléticas tem de se tornar, cada vez mais, integrada pois a pessoa com Multimorbilidades (onde se incluem as condições músculo-esqueléticas) é cada vez mais a norma e não a exceção. Assim, a prestação de cuidados de Fisioterapia a pessoas com estas condições deve ser realizada com profissionais de saúde de outras áreas, permitindo à intervenção alterar vários determinantes (sociais e emocionais) e promovendo uma maior capacitação da pessoa para gerir com maior eficiência o seu processo de saúde e com isso ser mais eficiente nos ganhos em saúde. Este modelo encontra nos CSP as condições para ser realizado.
Paulo Pereira
Fisioterapeuta | ACeS Dão Lafões
Pedro Maciel Barbosa
Fisioterapeuta | ACeS Matosinhos, ULS Matosinhos
Escola Superior de Saúde do Porto, Instituto Politécnico do Porto
Rubina Moniz
Fisioterapeuta | ACeS da Arrábida
Escola Superior de Saúde de Setúbal, Instituto Politécnico de Setúbal
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
[1] European Commission, Call for Action “United towards Integrated Care". 2016.
[2] Cieza A, Causey K, Kamenov K, Hanson S, Chatterji S, Vos T. Global estimates of the need for rehabilitation based on the Global Burden of Disease study 2019: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2019. The Lancet. 2020.
[3] Hartvigsen J, Hancock MJ, Kongsted A, et al. What low back pain is and why we need to pay attention. Lancet 2018; 391: 2356–67.
[4] Schofield D, Kelly S, Shrestha R, Callander E, Passey M, Percival R. The impact of back problems on retirement wealth. Pain 2012; 153: 203–10.
[5] Direção-Geral da Saúde (DGS), Institute for Health Metrics and Evaluation. Portugal: The Nation’s Health 1990–2016: An overview of the Global Burden of Disease Study 2016 Results. Seattle, WA: IHME, 2018.
[6] Ni M, Brown LG, Lawler D, et al. The rehabilitation enhancing aging through connected health (REACH) study: study protocol for a quasi-experimental clinical trial. BMC Geriatr 2017; 17: 221.
[7] Persson J, Bernfort L, Wåhlin C, Öberg B, Ekberg K. Costs of production loss and primary health care interventions for return-to-work of sick-listed workers in Sweden. Disabil Rehabil 2015; 37: 771–76.
[8] Gomes LA, Fernandes R, Caeiro C, Pimentel-Santos F, Branco JC, Pinto RS, Moniz R, Canhão H, Rodrigues AM, Cruz EB (2021). The SPLIT Stratified Model of Care for Low Back Pain – Results from an Implementation Study in the Portuguese Context of Primary Healthcare. Ata Reum Portuguesa (XXIII CPR Special Edition); Vol 46 - Nº 4: Suplemento - p.68.