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FISIOTERAPIA MÚSCULO-ESQUELÉTICA:
O FUTURO NO PRESENTE

#9
A CHRISTMAS CAROL: UM CONTO DA FISIOTERAPIA EM PORTUGAL

Publicado a 06/01/2022

Tal como no conto de Charles Dickens, existe um “fantasma” do passado, do presente e do futuro da fisioterapia em Portugal chamado Prática Informada pela Evidência (PIE).

Apesar de já ter alguns anos, a profissão de fisioterapeuta em Portugal é relativamente recente comparativamente a outras áreas da saúde. Inicialmente, faziam-se os possíveis para realizar a melhor prática clínica, mas muitas vezes só se podia recorrer à experiência clínica para se tomar decisões. Então, esta podia ser definida como uma prática baseada na experiência, na qual a informação era obtida sobretudo pela tentativa e erro, pela comunicação/demonstração da prática clínica diária na sua rede de pares, e pela interação com colegas que eram considerados experts/referências na área (alguns com teorias e práticas pouco fundamentadas). Os anos foram passando e foram-se criando condições para uma mudança, impulsionada pelas instituições de ensino superior (IES) e pelo desenvolvimento tecnológico (em especial as bases de dados eletrónicas), que melhorou a nossa prática e nos aproximou da PIE.

Atualmente, a PIE parece ter entrado no nosso quotidiano. Não há discurso individual ou profissional onde não entre a palavra evidência, quer seja numa formação ou numa mera discussão nas redes sociais. Contudo, o seu impacto na qualidade dos cuidados na Fisioterapia Músculo-Esquelética (ME) parece continuar aquém do desejado. Se por um lado, os estudos mais recentes realizados sobre a PIE em Portugal demonstram que apresentamos boas crenças, atitudes, conhecimentos e comportamentos em relação à PIE; por outro lado, estudos recentes sobre a prática autoreportada na ME pelos fisioterapeutas em Portugal, mostram que esta ainda não está complemente de acordo com as melhores normas de orientação clínica. Sentimos essa necessidade (talvez) para nos integrarmos na nossa “alcateia” e seguirmos a corrente atual, mas na prática… a minha experiência, a opinião do “guru” das redes socias e/ou o curso de fim de semana (de qualidade discutível) parecem continuar a influenciar desproporcionadamente a nossa tomada de decisão. Então, existe uma clara diferença entre “o que eu acho que faço” e “o que eu realmente faço”. Isto é, entendemos e dominamos cada vez mais os passos para realizar uma correta PIE, mas não os transportamos totalmente para a prática clínica diária.

Parecem existir vários “culpados” para tal acontecer, entre os quais: evidência (dificuldade em aceder, compreender e aplicar na prática), experiência clínica (ideia errada sobre a sua atualização e a melhor prática), utentes (crenças erradas e/ou preferência por intervenções passivas), IES (conteúdos desatualizados e pouca importância dada à implementação da PIE), local de trabalho (limitação no plano de intervenção e recursos insuficientes), fisioterapeuta (utilização excessiva de intervenções passivas e/ou da “moda”; falta de registo e avaliação dos utentes; não utilização de escalas ou, quando utilizadas, apresentam problemas na sua validade e/ou fiabilidade), profissão e país (pouca importância dada pelos governantes).

Então, ainda há um grande caminho a percorrer para melhorar a nossa prática. É assim recomendado que as IES continuem a abordar o tema PIE, focando-se também mais na forma de implementar efetivamente a evidência na prática clínica diária. Adicionalmente, seria positivo que as IES “abrissem as suas portas” regularmente aos fisioterapeutas, para servirem como um centro de conhecimento e atualização. De referir que as IES também têm em mãos o desenvolvimento de ciência “made in Portugal”. Muita da ciência da nossa área ainda é de baixa qualidade e/ou inconclusiva e não responde diretamente às necessidades da nossa prática. Ainda realizamos uma prática informada em ciência desenvolvida no estrageiro que pode trazer algumas limitações, não só na sua interpretação, mas também por não estar em linha com o nosso contexto sociodemográfico, profissional e organizacional dos cuidados de saúde. No entanto, os fisioterapeutas devem estar do “lado certo da luta”, compreendendo o quanto é importante uma atualização constante dos seus conhecimentos através de métodos e instituições credíveis. Adicionalmente, os fisioterapeutas necessitam de ter o ambiente propício para desenvolver a melhor prática. Os locais de trabalho deverão ter um misto entre experiência, ciência e juventude (os fisioterapeutas mais velhos podem partilhar a sua experiência com os mais novos, os mais novos podem partilhar as suas mais valias nas novas tecnologias e conhecimentos recentes, e os fisioterapeutas com elevado grau académico/investigadores para responder às questões da prática clínica diária), fornecerem os recursos necessários, darem uma completa autonomia no desenvolvimento e implementação do plano de intervenção, e exigir que os fisioterapeutas registem e avaliem regularmente. Finalmente, a comunidade também precisa de ser um alvo das nossas ações, de forma a que deixe de nos ver como meros “artistas” e/ou aplicadores de técnicas, e que entenda que podemos dar muito mais qualidade de vida e proporcionamos uma poupança de recursos ao nosso país. Por isso, exigisse-se um maior respeito e um investimento mais sério na promoção da nossa profissão junto da comunidade e de outros stakeholders.

Assim, assumir que a PIE é dominante na prática dos fisioterapeutas em condições ME parece precipitado e impede que as melhorias e ações necessárias sejam implementadas. Precisamos de ir refletindo constantemente nestes pontos, para continuar a melhorar a qualidade da Fisioterapia ME em Portugal e com isso, tal como no conto “A Christmas Carol”, acabarmos com os nossos “fantasmas”.

Ricardo Ferreira

Fisioterapeuta

Instituto Politécnico da Maia, Centro de Investigação N2i

Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra, Instituto Politécnico de Coimbra

Diogo Pires

Fisioterapeuta

Presidente do GIFME - APFISIO

Escola Superior de Saúde do Alcoitão

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