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FISIOTERAPIA MÚSCULO-ESQUELÉTICA:
O FUTURO NO PRESENTE

#11
O SOBREDIAGNÓSTICO, A PROMOÇÃO DA PROCURA E A CREDIBILIDADE SOCIAL DA FISIOTERAPIA MÚSCULO-ESQUELÉTICA

Publicado a 27/03/2022

A Fisioterapia em condições músculo-esqueléticas (ME) tem evoluído rapidamente em Portugal nas últimas décadas e quase sempre no sentido da melhoria do acesso e qualidade dos cuidados. O desenvolvimento científico da profissão, a expansão da prática privada ou o atual reconhecimento social do Fisioterapeuta podem ser vistos como o reflexo desta evolução. Contudo, há avanços que merecem ser observados de outro prisma e que nem sempre devem ser encarados como positivos para a melhoria dos cuidados e credibilidade social da profissão.


Um tema largamente discutido na área da medicina e, mais recentemente, na Fisioterapia ME é o sobrediagnóstico e toda a cadeia de consequências que dele parece vir. Globalmente, o sobrediagnóstico refere-se à deteção e valorização de achados relacionados com a saúde de uma pessoa que levam a um diagnóstico que não apresenta um benefício real para a sua saúde e tratamento. Utilizando um exemplo comum da área médica: perante uma pessoa de 52 anos com dor lombar aguda não-específica (sem red-flags) é requerida uma ressonância magnética que (naturalmente!) deteta alterações físicas típicas da idade, mas que leva a um diagnóstico biomédico e a um conjunto de intervenções (desnecessárias!), visando a “cura” de alterações normais, não modificáveis, que não diferenciam pessoas sintomáticas de assintomáticas e cuja relação direta com os sintomas não pode ser estabelecida. Assim, ao sobrediagnóstico temos de somar um fenómeno de sobretratamento (aplicação de intervenções sem benefício para o utente), utilização de intervenções de baixo valor em saúde e custos financeiros desnecessários. 


O mesmo racional e sequência de acontecimentos pode ser aplicado quando os Fisioterapeutas hipervalorizam: os resultados de testes físicos de validade e precisão não demonstradas (Ex: Teste de Gillet); “alterações” posturais (Ex: torção do sacro) que não passam de variações do normal (ou são apenas fruto do nosso imaginário!); ou alterações tecidulares detetadas através de meios imagiológicos (Ex: ecografia) que, na maioria das vezes, servem apenas para encontrar um “bode expiatório” para a dor do nosso utente! Tudo isto pode levar a um conjunto de irracionalidades como prevenir problemas que nunca iriam existir, recomendar tratamentos para problemas que não existem ou não são modificáveis, ou perpetuar crenças e intervenções com claro prejuízo para a saúde e carteira do utente.


Este não é um problema novo nem exclusivo da Fisioterapia ME e, na verdade, não está devidamente estudado no contexto português. Existem um conjunto de razões plausíveis para explicar este problema (Perfil biomédico dos Fisioterapeutas? Desatualização da formação graduada e pós-graduada? Impreparação para a prática autónoma? Expansão indevida do âmbito de competências?), mas o foco deste texto é explorar a forma como a partir do sobrediagnóstico podemos estar a contribuir para a promoção da procura e descrédito social da profissão. 


A promoção da procura ocorre quando um profissional de saúde promove cuidados de saúde que não apresentam fundamento no seu raciocínio clínico, literatura científica, características ou preferências do utente. Ou seja, o profissional cria a sua própria procura (e os ganhos económicos que daí advêm) em vez de responder exclusivamente à procura e necessidades reais dos utentes / mercado. Este é um fenómeno comum e aceitável na maioria das atividades económicas da nossa sociedade que visam o lucro, mas completamente inaceitável no contexto da saúde, dado que se trata de um aproveitamento indevido da “assimetria” de conhecimentos entre o profissional e o utente e da (eventual) fragilidade do estado de saúde do utente que o leva a seguir as recomendações do profissional. Contudo, deve ficar claro que este comportamento é maioritariamente determinado por aspetos que fogem ao controlo e à consciência do profissional (Ex: desatualização e desconhecimento genuíno sobre as melhores práticas; métodos perversos de financiamento dos cuidados de saúde; metas financeiras e objetivos laborais; competição e excesso de profissionais em determinada área). Por exemplo, um dos motivos (certamente existirão outros...) para a existência de numerus clausus na área da medicina é evitar o excesso de médicos que podia levar à promoção da procura.


Apesar dos múltiplos fatores que podem contribuir para a promoção da procura, parece razoável que um dos caminhos para tal possa começar no sobrediagnóstico e na sequência de atos e recursos em saúde que, à luz do conhecimento atual, não seriam necessários. No limite, tudo isto pode ter uma consequência particularmente importante e ameaçadora para a nossa profissão: a perda progressiva da credibilidade social. Socialmente, a Fisioterapia ME (e no seu todo) teve uma evolução bastante favorável nas últimas décadas, facilmente comprovada pelo crescimento sustentado do setor privado, da grande procura da licenciatura em Fisioterapia pelos jovens quer no ensino superior público como privado ou na recente criação da Ordem dos Fisioterapeutas. Porém, a sociedade está em constante mudança e a forma como somos olhados e valorizados socialmente não é um fenómeno estanque. A perceção social (com ou sem fundamento factual) de que o Fisioterapeuta tende a promover cuidados desnecessários pode ser uma ameaça real à nossa credibilidade social a médio / longo prazo. 


A atual credibilidade e valor social da Fisioterapia ME é determinante para o crescimento sustentado e afirmação da profissão no setor da saúde em Portugal. É fruto de um caminho longo e deve ser preservada ou incrementada coletivamente. Devemos identificar de forma honesta potenciais ameaças e definir estratégias efetivas (e talvez pouco populares) que salvaguardem a trajetória ascendente da Fisioterapia ME e do seu papel social. 

Diogo Pires

Presidente do GIFME - APFISIO

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